Cântico dos Cânticos 5:1 a 6:4 e cap. 3:1-5
A Preguiça Espiritual e a sua Cura
A chave dessa preciosa porção da Escritura está nas seguintes palavras: "Eu dormia, mas o meu coração velava" (5: 2). O coração da amada permanecia fiel ao Amado, mas lhe faltava certa energia, e ela tinha uma inclinação à preguiça. Por conseqüência, a amada tornou-se negligente em sua vigilância, caindo num estado de indolência. A prova disso está na comparação entre sua situação e a do Amado (cap. 5:2-3). Enquanto a cabeça dele estava cheia de orvalho e seu cabelo estava molhado das gotas da noite, ela descansava confortavelmente.
A Bíblia está repleta de contrastes deste tipo. Um exemplo disso é Pedro sentado tranqüilamente junto à fogueira, esquentando-se com os inimigos de Cristo, enquanto seu Senhor e Mestre estava exposto às injúrias e aos ultrajes de Seus perseguidores (Lucas 22:55-65).
Tal estado de alma demonstra os resultados da influência mundana no coração do crente, mas o Senhor não fica indiferente a isso. Ele ama tanto os Seus que não permite que permaneçam nessa condição e se ocupa em acordá-los do sono. Isso é o que lemos neste parágrafo do Cântico. A amada notou que seu Amado desejava estar perto dela:
"Eis a voz do meu amado, que está batendo: Abre-me, minha irmã, querida minha, pomba minha, imaculada minha, porque a minha cabeça está cheia de orvalho, os meus cabelos, das gotas da noite". As expressões que o Amado usou, os temos nomes pelos quais chamou Sua amada, certamente estavam destinados a despertar o amor no coração dela e provavam quão preciosa ela era para Ele. Demonstravam também que ela não O havia esquecido. Contudo, o motivo de Sua linguagem originava-se no contraste que mencionamos: Ele estava velando fora da casa enquanto ela permanecia dentro desfrutando do conforto.
Como seria possível recusar um chamado tão carinhoso assim? Sua resposta revelou esse mistério. A amada estava mais preocupada com seu próprio bem-estar do que com os interesses do Amado (cap. 5:3). Quantos perdem dessa forma o privilégio de uma relacionamento íntimo com Cristo! Ele está perto e quer revelar-Se plenamente a nós. Não ignoramos Sua presença, mas, ah!, nos distraímos com outras coisas, desviamos nossa atenção e perdemos assim o gozo da comunhão que Ele deseja ter conosco.
Da mesma forma que a amada, temos tirado nossa "túnica" , esquecendo que nossos ombros têm de estar sempre cingidos (Lucas 12:35); e, usando a linguagem do Cântico, temos lavados nossos pés e não queremos que se sujem, pois somos muito preguiçosos para lavá-los de novo, mesmo quando o Senhor nos pede que abramos a porta.
Todavia, o Senhor não Se impõe àqueles que não estão dispostos a ouvir Sua voz. Quando viu que a porta estava fechada, Ele se foi. A amada reconheceu os esforços dEle para entrar: Ele a chamou, tentou abrir a porta e "meteu a mão por uma fresta" . Depois, finalmente, ela lhe respondeu; seu coração se comoveu por Ele; sua preguiça desapareceu, ela se levantou e foi abrir a porta para seu Amado, mas Ele já tinha ido embora. Ela perdeu a oportunidade! Quando Ele quis entrar, ela não se dispôs a abrir, e, quando decidiu recebê-LO, a amada se deu conta de que Ele não estava mais lá.
O crente tem de aprender que seu destino e sua comunhão com o Senhor dependem da sua obediência e do seu respeito a Ele. O Amado aproximou-se de Sua amada, revelando-Se com toda a força de Seu amor, e ela perdeu as bênçãos inefáveis por não querer abandonar seu descanso.
Primeiramente, Ele a procurou, depois foi a vez dela procurá-LO, mas que decepção! Ela se levantou para abrir a Seu Amado e descobriu ,que O tinha perdido. Disse então: "Busquei-o e não o achei; chamei-o, e não me respondeu" (v. 6). Ele renunciou ao Seu amor? De modo algum! Ele quis dar uma lição necessária para Sua amada, a fim de restaurar-lhe a alma mediante a energia e os desejos de seu coração. Ele quis revelar sua verdadeira condição, mostrando-lhe que a restauração acontece tão-somente no caminho da disciplina. Basta um instante para perdermos a alegria da presença de Cristo, mas, para recuperá-la, são necessários dias. O perdão segue-se imediatamente à confissão, mas o gozo da comunhão vem lentamente. As experiências da amada demonstram isso. Iremos, pois, analisá-las de perto.
O que ela tinha de fazer à noite pelas ruas da cidade sem o Amado? (v. 7). Não conseguindo achá-LO, a amada contou sua situação aos guardas, que não a perdoaram. Eles não estavam encarregados de exercer disciplina e manter a ordem da: cidade? Que bom quando encontramos homens semelhantes na Igreja, que velam pelos crentes,' por quem hão de prestar contas! (Hebreus 13:17), e que não! vacilam em "espancar" e "ferir", pelo poder da Palavra, quando isso se faz necessário!
Depois a amada lutou com os guardas do muro, que tiraram! seu manto, descobrindo assim sua condição espiritual, pois, devido à negligência e a egoísmo, ela estava momentaneamente sem o Amado. Se os guardas da cidade representam os pastores, podemos dizer que os guardas dos muros representam aquelas pessoas que se empenham em manter a santidade na casa de Deus. Os muros protegem do inimigo exterior; afastam o mal e oferecem paz e proteção aos que estão dentro deles. Os guardas dos muros lutam firmemente pela separação do mal, mantendo longe da entrada todos os que pretendem entrar em segredo na cidade.
Que contraste entre o versículo 1 e o 7! Ela disse:
"Venha o meu amado para o seu jardim" (cap. 4:16). A resposta não demorou, segundo vemos no versículo 1 do capítulo 5. Contudo, depois desse período de felicidade, houve uma mudança repentina, tal como às vezes acontece com o crente. Lemos mais adiante: "Eu dormia, mas o meu coração velava" (5:2). Ela, que era tão feliz em sua relações com Ele, via-se nesse momento espancada e ferida pelos guardas da cidade, e despojada de seu manto pelos guardas dos muros. A felicidade dos servos do Amado provocou nela um desejo premente de voltar a vê-LO. O versículo 8
prova isso: "Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, que lhe direis? Que desfaleço de amor". É muito doloroso ver um crente que uma vez desfrutou da comunhão com Jesus perguntar onde está seu Senhor aos que nunca conheceram tal intimidade!
A amada tinha perdido tudo, tal como Maria quando pensava que haviam levado seu Senhor (João 20:15). E sem Ele o mundo não era mais que um grande deserto para ela. Bem-aventurado o crente que já teve tais benditas experiências!
As "filhas de Jerusalém", cujos olhos não estavam abertos para ver as belezas do Amado, responderam: "Que é o teu amado mais do que outro amado?". Por mais negligente que tivesse sido, tal pergunta manifestou a retidão do coração da amada. Seu amor avivou-se, e ela se surpreendeu por não terem notado as admiráveis qualidades de seu Amado. Então descreveu com ardor todas as belezas dEle, detendo-se com prazer em cada característica e terminando com estas palavras:
"Sim, ele é totalmente desejável" (v. 16). Era um testemunho radiante acerca do Amado, e o
segredo estava em seu coração transbordante (Salmo 45: 1). Este também é o segredo para falar de Cristo. Em primeiro lugar tenho de conhecê-LO; depois, meu coração tem de estar tomado completamente por Ele, sentindo Seu amor, Sua graça e perfeição.
Três pontos chamam' a atenção. O primeiro é a conseqüência do testemunho da amada. As filhas de Jerusalém também desejaram buscar o Amado, assim como sucedeu com João Batista quando viu o Senhor e exclamou admirado:
"Eis o Cordeiro de Deus!" (João 1:29), e seus discípulos o deixaram para seguir Jesus. Aquelas moças também se sentiram irresistivelmente atraídas pelo Amado. Não há coisa que atraia mais as pessoas que o testemunho de um coração transbordante do poder do Espírito.
Em segundo lugar, a restauração da amada foi completa. As perguntas das filhas de Jerusalém fizeram palpitar seu coração e, enquanto falava das qualidades e virtudes do Amado, uma obra nela foi feita: seu amor reacendeu-se e ela descobriu em seguida onde poderia encontrar o objeto de sua afeição. Ela disse às companheiras: "O meu amado desceu ao seu jardim, aos canteiros de bálsamo, para pastorear nos jardins e para colher os lírios" . Suas dúvidas desapareceram, e com fidelidade acrescentou: "Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu" (cap. 6:2-3).
Observemos atentamente como esse trabalho divino se realizou. A partir do exato momento em que o cristão constata que está frio, sem vida e sem poder, deve ocupar-se com as diversas perfeições e múltiplas graças de Cristo que estão em Sua Palavra. E, enquanto meditar no que Cristo é para ele, falará aos outros da excelência de Sua Pessoa. Então experimentará um ardor em seu coração e se lembrará novamente de Seu amor.
O terceiro e último ponto é este: imediatamente após a restauração da amada, o Amado testificou quão preciosa ela era a Seus olhos, e o quanto era estimada. Resumindo, a comunhão do amor segue-se à restauração da alma.