“ESTUDOS SOBRE A PALAVRA DE DEUS”
Tradução de “Synopsis of the Books of the Bíble – John Nelson Darby
PRIMEIRA EPÍSTOLA DE S. JOÃO – CAPÍTULO 2 (parte A)
O que João escrevia acerca da revelação da natureza de Deus, que tinha recebido daquele que era a Vida, tinha por fim evitar que eles pecassem. Mas, falar assim, é admitir que eles podiam pecar. Não era, porém, necessária que eles o fizessem, porque a presença do pecado na carne não nos obriga de modo nenhum a andar segundo a carne; todavia, se suceder que pequemos, há provisão feita pela graça para que esta atue e não sejamos nem condenados, nem repostos sob a lei.
Temos um Advogado junto do Pai, Alguém que prossegue a nossa causa lá em Cima; mas isto não é para obtermos Justiça, nem para de novo nos lavar dos nossos pecados. Tudo isso foi já feito. A Justiça divina colocou-nos na luz, como o próprio Deus está na luz. Porém, a comunhão é interrompida, se algum pensamento impura encontrar lugar nos nossos corações; isto porque esse pensamento é da carne, e a carne não tem nenhuma comunhão com Deus. Quando a comunhão é interrompida, quando pecamos (não quando nos arrependemos, porque é a Sua intercessão que nos leva ao arrependimento), Cristo intercede por nós. A Justiça está sempre lá - a nossa Justiça - "Jesus Cristo, o Justo”. Assim, não sendo mudados nem a Justiça, nem o valor da propiciação pelo pecado, a graça atua (pode dizer-se que atua necessariamente) em virtude dessa Justiça e desse sangue que está diante de Deus - atua em resposta à intercessão de Cristo, que nunca nos esquece, para nos reconduzir à comunhão pelo arrependimento. Por isso, ainda sobre a Terra, antes de Pedra ter cometido o pecado, Jesus orava por ele; e, no preciso momento, Jesus lança um olhar sobre ele! Pedro arrepende-se e chora amargamente a sua falta. Depois o Senhor faz tudo o que é necessário para que Pedro julgue o próprio fundamento do seu pecado; mas tudo isso é graça!
O mesmo se dá conosco. A Justiça divina permanece como fundamento imutável das nossas relações com Deus, estabelecidas sobre o sangue de Cristo. Quando a comunhão, que não existe senão na luz, é interrompida, a intercessão de Cristo, válida em virtude do Seu sangue {porque a propiciação pelo pecado também foi feita}, restaura a alma para que ela goze ainda da comunhão de Deus, de harmonia com a luz em que a Justiça a introduziu1. Esta propiciação foi feita para o mundo inteiro, e não somente para os Judeus, nem com a exclusão de quem quer que seja, mas para o mundo inteiro, Deus, na Sua natureza moral, foi plenamente glorificado pela morte de Cristo.
Estes três pontos capitais ou, se quisermos, estes dois pontos capitais, com um terceiro, que é suplementar, a saber, a intercessão - formam a introdução, a doutrina da Epístola. Todo o resto é um aplicação experimental do que encerra esta parte, isto é; Primeiro {sendo dada a vida}, a comunhão com o Pai e o Filho; segundo, a natureza de Deus, a luz que manifesta a falsidade de toda a pretensão à comunhão com a luz, quando se anda nas trevas; terceira, vemos que o pecado está em nós e que podemos cair, embora estejamos limpos dele na presença de Deus, de maneira a gozarmos da luz; vemos a intercessão que Jesus Cristo, o Justo, pode continuamente exercer perante Deus na base da Justiça que está sempre na Sua presença, e o sangue vertido pelos nossos pecados, a fim de restabelecer a nossa comunhão, quando a tivermos perdido pela nossa culpável negligência.
O Espírito prossegue agora o desenvolvimento dos caracteres desta vida divina.
Ora, nós somos santificados pela obediência de Jesus Cristo, isto é, para obedecermos segundo os mesmos princípios em que Ele assentou a Sua obediência, sendo a vontade de Seu Pai o motivo bem como a regra das Suas ações. É a obediência de uma vida, para a qual fazer a vontade de Deus era comida e bebida, - mas não como sob a lei, para ter a vida. A vida de Jesus Cristo era uma vida de obediência, na qual Ele gozava perfeitamente do amor de Seu Pai, vida que foi provada em todas as coisas, e assim demonstrada perfeita. As Suas palavras, os Seus mandamentos eram a expressão dessa vida. São eles que dirigem essa vida em nós - e devem exercer sobre nós toda a autoridade de Quem os prescreveu.
1. o assunto tratado aqui é a comunhão, e é por esta razão que se fala de faltas positivas. Em Hebreus, como vimos, é o acesso a Deus, e nós somos "a perfeição dos perpetuamente". O sacerdócio é para a misericórdia e para o socorro - e não para os pecados, exceto o grande ato da propiciação.
A lei prometia a vida àquele que obedecesse aos seus mandamentos. Cristo é a Vida. E esta Vida foi-nos comunicada, a nós - aos crentes. Assim, as palavras que foram a expressão dessa vida, na sua perfeição, em Jesus, dirigem-na e conduzem na em nós, da harmonia com essa mesma perfeição. Aliás, ela tem autoridade sobre nós. Os mandamentos de Jesus são a sua expressão. Temos, pois, de obedecer e de andar como Ele andou. São as duas formas da vida prática: Não basta andar bem; é preciso obedecer, porque existe a autoridade. É o princípio essencial de um bom comportamento. Por outro lado, a obediência do Cristão - como a do próprio Cristo - não é, muitas vezes, aquilo que nós pensamos. Nós chamamos obediente um menino que, embora tendo vontade própria, se submete imediatamente, quando a vontade do pai ou da mãe intervém para o impedir de fazer o que ele quer. Mas Cristo nunca obedeceu dessa maneira! Ele veio para fazer a vontade de Deus. A obediência era a Sua razão de ser. A vontade de Seu Pai era o motivo, e, como o amor, que nunca se separava dela, o único motivo de toda a atividade, de todo o movimento nEle. Tal é a obediência cristã propriamente dita. É uma nova vida, que encontra o seu prazer em fazer a vontade de Cristo, reconhecendo a Sua inteira autoridade sobre ela. Nós temo nos por mortos para todo o mais; estamos vivos para Deus! Não somos de nós mesmos. Não conhecemos a Cristo enquanto não vivermos a Sua vida, porque a carne não o conhece e não pode compreender a Sua vida. Ora, esta vida é a obediência! Assim, aquele que diz: "Eu conheço-o", e não guarda os Seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade. Note-se que não nos é dito aqui: ele engana-se a si mesmo, porque é bem possível que ele se engane, como no caso da comunhão imaginária, porque, neste caso, a vontade está em atividade, e facilmente se apreende, se quisermos reconhecê-lo. Mas a realidade não está ali; ele é mentiroso, e a verdade no conhecimento de Jesus, de que ele faz profissão, não está nele.
Há duas observações a fazer aqui: Primeira, o apóstolo toma sempre as coisas tal como elas são em si mesmas, de uma maneira abstrata, sem modificações trazidas por outras coisas, no meio das quais ou em relação com as quais encontramos as primeiras. Segunda, o encadeamento das consequências, que o apóstolo tira, não é o de raciocínios exteriores, cuja força, por conseguinte, está à superfície dos próprios raciocínios. João raciocina segundo um grande princípio interior, de sorte que não vemos a força dos raciocínios, a não ser que se conheça o fato, e mesmo o alcance desse princípio, e, em particular, o que a vida de Deus é na sua natureza, no seu caráter e na ação. Mas, a não ser que possuamos esta vida, não se compreende ali nada nem se pode compreender. Temos, porém, a autoridade da Palavra de Deus e do apóstolo para nos dizer que é assim mesmo, e isso nos basta. Mas a ligação do raciocínio não será compreendida sem a posse da vida que interpreta o que ele diz - e que daquilo que ele diz é a interpretação.
Voltando ao texto: "Qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado" (v.S). É assim que nós sabemos que O conhecemos. A expressão: "A Sua Palavra" tem um sentido um pouco mais extenso do que a outra: "Os Seus mandamentos". Quer dizer que, embora ela implique igualmente a obediência, a Palavra é algo de menos exterior. "Os Seus mandamentos" são pormenores da vida divina; "A Sua Palavra" encerra toda a expressão desta vida-o espírito desta vida. É universal e absoluta.
A Sua "Palavra" e os Seus "mandamentos" não são fundamentalmente diferentes. É o que nos é afirmado no v.7:
"Este mandamento antigo é a palavra que desde o princípio ouvistes". Podemos bem perfeitamente dizer que o mandamento é a palavra de Cristo; mas eu duvido que se possa dizer que a Palavra é o mandamento. E isto faz sentir a diferença que existe entre as duas expressões. O contraste dos versos 4 e 5 é notável, e tem a sua origem na possa e na consciência inteligente e completa da posse da vida divina, segundo a Palavra, ou na falta desta posse. "Aquele que diz: Eu conheço-o, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade" , porque esta verdade não é senão o que nos revela a Palavra. E se nós vivermos da natureza de que a palavra de Cristo é a expressão, e se por esta palavra nós O conhecemos, obedecemos a esta Palavra. Por outro lado, se estivermos na posse desta vida, participando da natureza divina, o amor de Deus está em nós. Temos os mandamentos de Cristo, a Sua Palavra, o amor perfeito de Deus; um comportamento conforme ao comportamento de Cristo, de maneira que a comunicação da vida de Cristo seja o verdadeiro mandamento nEle e em nós, o andamento na luz, o amor pelo nosso irmão. Que rica corrente de bênçãos! As pretensões que se destacam aqui são as seguintes: Conhecer a Cristo, permanecer nEle, estar na luz. A prova de que a primeira é legítima é a obediência. Portanto, se permanecermos em Cristo (o que sabemos ao guardarmos a Sua Palavra), devemos andar como Ele andou. Que a última pretensão é justa é demonstrado pelo amor que se tem pelo nosso irmão. No segundo caso, a vivência é mantida a toda a altura da vivência de Cristo, como nosso dever; mas esta vivência não é apresentada como prova de que permanecemos nEle, de que guardamos a Sua Palavra. Note-se que não nos é dito: "Nós sabemos que cremos"; isso não é questão aqui, mas sim: "Nos sabemos que estamos nEle".
Acrescentarei que o apóstolo não emprega nunca essas provas para dizer, como geralmente se diz: "Por isso nós duvidamos". É inteiramente certo, segundo os versos 12 e 13, que ele considera aqueles a quem se dirige como estando todos perdoados; de outro modo, ele não teria escrito, e como tendo o Espírito de adoção - mesmo os mais jovens e os mais fracos. Outros procuravam induzi-Ias a duvidar; e ele escreve-lhes a fim de que os seus corações estejam assegurados perante Deus, a fim de que não sejam avassalados pela dúvida, como se não tivessem um Cristo perfeito e um Cristianismo perfeito - a vida eterna. Era o meio de guardar e de manter firme a segurança, uma vez que eles a possuíam (não tinham de a obter), quando pudessem ser abalados. Estavam perdoados, eram filhos! Quando outros poderiam levá-Ias a duvidar, ele escrevia-lhes, para que estivessem plenamente certos de que não havia nenhuma razão para que a dúvida entrasse em seus corações.
Ora esta vida é a vida manifestada em Jesus e que nos é comunicada. Temo-Ia nós visto em Cristo? Ou duvidamos que esta vida seja amor, que o amor de Deus tenha sido manifestado nela?.
Portanto, se eu guardo a Sua Palavra, se o fim e o significado da vida que esta Palavra exprime estão cumpridos e realizados, o amor de Deus é perfeito em mim. O apóstolo, como já tivemos oportunidade e de referir, fala sempre de um modo abstrato. Se, de fato, em dado momento, eu não observo a Palavra, não realizo o Seu amor, e a feliz relações com Deus é interrompida. Mas enquanto eu for movido e governado absolutamente pela Sua Palavra, o Seu amor realiza-se perfeitamente em mim, porque a Sua Palavra exprime o que Ele é - e eu guardo-a! É a comunhão inteligente com a Sua natureza na sua plenitude, natureza de que eu participo; de sorte que sei que ele é Amor perfeito, estou cheio dEle - e isto revela-se nos meus caminhos, porque esta Palavra é a perfeita expressão de Si mesmo2.
2. Não duvido de que se trate do verdadeiro sentido de João 8:25: "Isso mesmo que já. desde o princípio, vos disse". O que Ele dizia era completa e essencialmente o que Ele era. O que Ele era, o que Ele dizia. Ora, é esta vida, que nos foi comunicada; mas ela era o amor de Deus entre os homens e no homem. Ora, esta vida, sendo a nossa, dando--nos a Palavra de Cristo o conhecimento, e sendo guardada esta Palavra, o Seu amor é realizado em nós em toda a sua extensão.
Por consequência, sabemos que estamos em Cristo, porque realizamos o que Ele é na comunhão da Sua natureza. Ora, dizendo que permanecemos nEle, é evidente, segundo o que acabamos de ver na instrução que o apóstolo nos dá, que deveríamos andar como Ele andou. A nossa vivência é a expressão prática da nossa vida; e esta vida é Cristo conhecido na Sua Palavra. E, uma vez que é pela Sua Palavra, nós, que possuímos esta vida, estamos sob uma responsabilidade inteligente de seguirmos esta vida, isto é, de andarmos como Ele andou, porque esta Palavra é a expressão da Sua vida.
Portanto, a obediência, como obediência, é o traço moral característico da vida de Cristo em nós; é a prova daquilo que, no Cristianismo, é inseparável da vida de Cristo em nós: Nós estamos em Cristo (comparar João 14:29). Sabemos não só que O conhecemos, mas também que estamos nEle. O gozo do amor perfeito de Deus, no caminho da obediência, dá-nos, pelo Espírito Santo, o conhecimento de que estamos nEle. Todavia, embora eu esteja em Cristo, não posso, verdadeiramente, ser o que Ele era, porque Ele era sem pecado; mas devo andar como Ele andou. Deste modo sei que estou em Cristo. Ora, se faço profissão de permanecer nEle, de ter ali inteiramente o meu coração e os meus pensamentos, devo andar como Ele andou. A obediência, realizada como princípio, e guardando a Sua Palavra, e assim o amor de Deus cumprido em mim, sabendo eu que estou n'Ele - eis o caráter da nossa vida e os princípios que a formam.
Nos versos 7 e 8 são apresentadas as duas formas da regra desta vida - formas que, de resto, respondem aos dois princípios que acabamos de enunciar. Não é um novo mandamento que o apóstolo lhes prescreve, mas sim mandamento antigo: é a Palavra de Cristo, desde o princípio. Se o não fosse, se fosse novo nesse sentido, tanto pior para aquele que o promulgava, porque já não era a expressão da vida perfeita do próprio Cristo, mas sim qualquer outra coisa, ou uma falsificação do que Cristo tinha dado a conhecer. Isto responde ao primeiro princípio, a saber: a obediência a mandamentos, aos mandamentos de Cristo. O que Ele dizia era rigorosamente a expressão do que Ele era. Ele podia mandar que se amassem uns aos outros, como Ela os tinha amado. Compare-se este mandamento com as Bem-aventuranças.
Contudo, e num outro sentido, o mandamento era novo, porque (pelo poder do Espírito de Cristo, estamos unidos a Ele, tirando dEle a nossa vida) o Espírito de Deus manifestava os efeitos desta vida, revelando um Cristo glorificado, de uma nova maneira. E agora não se tratava apenas de um mandamento; como a coisa era verdadeira em Cristo, era-o também nos Seus, na sua qualidade de participantes de sua natureza, estando eles em Cristo e Cristo neles.
Por esta revelação e pela presença do Espírito Santo, as trevas desapareciam, iam-se embora, e a verdadeira luz brilhava de fat03. Não haverá outra luz no Céu, mas só então ela será publicamente manifestada em glória, sem nuvens.
Verso 9: A vida, como em João 1 :4, era agora a luz dos homens; e é muito mais brilhante para a fé depois que Cristo foi assunto ao Céu, pois é através do véu rasgado que ela brilha com o maior esplendor.
A pretensão de O conhecermos, de estarmos nEle, foi examinada; agora é a de estarmos na luz, e isto antes de o Espírito de Deus aplicar, em pormenor, as qualidades desta vida como uma prova da Sua existência no coração, em resposta aos sedutores que queriam aterrorizar os Cristãos por meio de idéias novas, como se estes não possuíssem realmente a vida, e, com a vida, o Pai Filho. Agora brilha a verdadeira luz, e esta luz é Deus, é a natureza divina; e anuncia, como sendo um meio de julgar os próprios sedutores, uma outra qualidade em relação com o nosso lugar na luz, quer dizer, com Deus plenamente revelado. Cristo era essa revelação no mundo. E nós somos chamados a sê-Ia também, na medida em que somos nascidos de Deus. E todo aquele que tem esta natureza ama o seu irmão. Deus não é amor? Não nos amou Cristo ao ponto de não ter vergonha de nos chamar Seus irmãos? Poderia eu ter a Sua vida e a Sua natureza, se não amasse os irmãos? Não! Nesse caso, andaria em trevas; não teria luz no meu caminho. Aquele que ama o seu irmão permanece na luz. A natureza de Deus atua nele, e ele permanece na brilhante inteligência espiritual desta vida, na presença e na comunhão de Deus. Se alguém odeia, é evidente que esse não tem a luz divina. Com sentimentos que são segundo uma natureza oposta a Deus, como seria possível que ele estivesse na luz?.
3. A força da palavra não é: "desapareceram, foram-se embora", pois ainda há muitas trevas no mundo; todavia, quanto à luz, com maior ou menor intensidade, ela tem brilhado sempre aqui e além.
Aliás, não há ocasião de queda naquele que ama os irmãos, porque anda de harmonia com a luz divina. Não há nada nele susceptível de fazer tropeçar um outro, porque a revelação da natureza de Deus, em graça, não faria certamente assim. Eis, pois, o que é manifestado naquele que ama o seu irmão4.
Como introdução, isto fecha a primeira parte da Epístola. Ela contém, na sua primeira metade, o lugar privilegiado dos Cristãos, a mensagem que nos dá a verdade acerca do nosso estado neste mundo e os recursos para as faltas. Isto termina no verso 2 do capítulo 2. Na segunda metade, encontramos as provas que o Cristão tem da verdadeira posse do privilégio segundo a mensagem: obediência, amor dos irmãos, conhecer Cristo, estar em Cristo, gozar do amor perfeito de Deus, permanecer nEle, estar na luz - tudo isto formando a condição que assim é provada.
Tendo posto estes grandes princípios, a obediência e o amor, como provas da posse da natureza divina, da posse de Cristo conhecido como vida, e da nossa morada nEle, o apóstolo continua a dirigir-se aos Cristãos pessoalmente e a mostrar-nos a nossa posição, na base da graça, em três diferentes graus de maturidade. Consideremos agora essas palavras que o apóstolo dirige em parêntesis, mas que são muito importantes:
Primeiramente, chama "fi lhos" a todos os Cristãos a quem escreve, expressão de ternura num apóstolo idoso e que sabe amar. E como lhes escreve (capítulo 2, verso 1) a fim de que não pequem, de igual modo escreve também porque todos os pecados deles lhes estavam perdoados por amor do Nome de Jesus. Era o Estado certo de todos os Cristãos - o que Deus lhes tinha concedido ao dar-lhes a fé, para que eles O glorificassem. João não levanta nenhuma dúvida acerca do fato de eles estarem perdoados. Escreve-lhes, porque eles o estão.
4. O leitor pode enriquecer os seus conhecimentos se comparar isto com o que nos é dito em Efésios 4:17 a 5:12, onde estes dois nomes de Deus, os únicos dois empregados para revelar a Sua natureza, o são também para nos mostrarem o nosso caminho e o verdadeiro caráter do Cristão; somente segundo o que o Espírito Santo nos dá por intermédio de Paulo - os conselhos e a obra de Deus em Cristo. Em João é de preferência a Sua natureza.
Encontramos em seguida três classes de Cristãos: os pais, os jovens e os meninos. O apóstolo dirige-se duas vezes aos pais, aos jovens e aos meninos (v. 13); aos pais, na primeira metade do v.14; aos jovens, na segunda metade deste mesmo verso, e até a o fim do v.1 7; e aos meninos, desde o v.18 até ao fim do v.275. No verso 28, o apóstolo volta a todos os Cristãos, chamando-os pelo nome de "filhos".
O que caracteriza os pais em Cristo é que eles conheceram Aquele que é desde o princípio, isto é, Cristo. É tudo o que ele tem a dizer a seu respeito. Tudo tinha conduzido a esse resultado. O apóstolo não faz senão repetir a mesma coisa, quando, mudando a forma da sua expressão, se dirige de novo a essas três classes. Os pais conheceram Cristo. Tal é o resultado de toda a experiência cristã. A carne é julgada, discernida lá onde ela se misturou com Cristo nos nossos sentimentos. Reconhece-se, de uma maneira experimental, que ela não tem nenhum valor, e, como resultado da experiência, Cristo fica só, desembaraçado de toda a mistura. Deste modo aprendemos a discernir o que apenas tem a aparência do bem. Não nos ocupamos de experiências - seria ocuparmo-nos de nós mesmos, do nosso próprio coração. Tudo isto é passado, e só Cristo fica como sendo a nossa parte, livre de toda e qualquer mistura, tal como Ele próprio Se deu a nós. Além disso, conhecemo-Lo muito melhor; os pais fizeram a experiência do que Ele é em tantos pormenores, quer de alegria na sua comunhão, quer, na consciência da fraqueza, ou na realização da Sua fidelidade, das riquezas da Sua graça, da Sua adaptação às nossas necessidades, do Seu amor, e na revelação da Sua própria plenitude, de sorte que eles podem dizer agora: "Eu sei em quem tenho crido!" Tal é o caráter dos "pais" em Cristo.
5. Em algumas edições, em vez de jovens, lemos: "mancebos"; e em vez de meninos, lemos: "filhinhos". A idéia não se altera, e nós respeitamos, como é óbvio, e divisão feita pelo autor da obra que ora traduzimos (N. do T.).
Os "jovens" formam a segunda classe. A força espiritual nos combates distingue-os - é a energia da fé. Eles venceram o maligno. Isto porque o apóstolo fala do que é o caráter deles como estando em Cristo. Como tais, ele têm de lutar, mas a força de Cristo é manifestada neles.
A terceira classe é formada pelos "pequeninos". Estes conhecem o Pai. Vê-se, aqui, que o Espírito de adoção e de liberdade caracteriza os mais pequeninos na fé de Cristo - e isto não é o resultado do progresso, mas sim o seu começo. Possuímos estas coisas porque somos Cristãos - e elas são sempre a marca distintiva dos principiantes. Os outros não as perdem, mas há outras coisas que os distinguem.
Dirigindo-se de novo a essas três' categorias de Cristãos, o apóstolo, como temos visto, não tem, acerca dos pais, senão de repetir o que tinha dito antes. É o resultado de vida cristã.
Pelo que concerne aos jovens, desenvolve o seu pensamento e acrescenta exortações; "Vós sois fortes - diz ele - e a Palavra de Deus está em vós". É uma característica importante. A Palavra é a revelação de Deus e a aplicação de Cristo ao coração, e assim temos os motivos que formam e governam o coração e um testemunho fundado sobre o estado do coração e sobre I convicções que têm força divina em nós. É a espada do Espírito I nas nossas relações com o mundo. Nós mesmos fomos formados por aquilo de que damos testemunho nas nossas relações com o mundo - e essas I coisas estão em nós, de acordo com o poder da Palavra de Deus.
Deste modo o maligno é vencido, porque ele não tem senão o mundo para apresentar às nossas cobiças; e a Palavra, permanecendo em nós, coloca-nos numa esfera de pensamentos inteiramente diferente, onde uma natureza também diferente é iluminada e fortificada pelas comunicações divinas. Â tendência do jovem é para o mundo; o ardor da sua natureza e a força da sua idade tendem a arrastá-lo para esse lado. Ele tem de se precaver contra essas tendências, separando-se inteiramente do mundo e das coisas que nele se encontram. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele, porque essas coisas não vêm de Deus. Há um mundo que U1e é próprio e do qual Cristo é o centro e a glória. A cobiça da carne, a cobiça dos olhos e o orgulho da vida eis o que está no mundo e o que o caracteriza. Não há, realmente, outros motivos no mundo além destes. Ora, estas coisas não são de Deus.
Deus é a origem de tudo o que é de harmonia com o Seu próprio coração - todas as graças, todos os dons espirituais, a glória, a santidade celeste de tudo o que tem sido e será manifestado em Cristo Jesus de todo o mundo de glória futuro, de que Cristo é o centro. E tudo isso não encontrou senão a Cruz para sua porção neste mundo. Mas aqui o apóstolo fala da origem, e, seguramente, não é o Pai que é a origem dessas outras coisas. Ora, o mundo passa; mas aquele que faz a vontade de Deus, aquele que, ao atravessar este mundo, toma para seu guia não as cobiças, mas sim a vontade de Deus - vontade que é segundo a Sua natureza e que a exprime - esse permanecerá eternamente, de acordo com a natureza e a vontade segundo as quais ele andou.
Veremos que o mundo e o Pai, com tudo o que é Seu, a carne e o Espírito, o Filho de Deus e Satanás, são postos respectivamente em oposição. Trata-se das coisas na sua origem e na sua natureza moral, dos princípios que atuam em nós e que caracterizam a nossa razão de ser e a nossa posição, e dos dois agentes, em bem e em mal, que se encontram em oposição, sem que ali haja - graças a Deus! - incerteza quanto ao resultado final do combate, porque a fraqueza de Cristo na morte é mais poderosa do que a força de Satanás. Satanás não pode nada contra o que é perfeito. Cristo veio ao mundo para destruir as obras de Satanás.
Aos pequeninos o apóstolo fala principalmente dos perigos que eles correm de parte dos sedutores. Adverte-os com grande ternura, recordando-lhes ao mesmo tempo que todas as fontes da inteligência e da força lhes estavam abertas e lhes pertenciam. É "a última hora"; não precisamente os últimos dias, mas o tempo que tinha o caráter final pertencendo aos caminhos de Deus a respeito deste mundo. O Anticristo devia vir, e havia já muitos anticristos. Nisto podíamos reconhecer que era a última hora. Não era nem simplesmente o pecado, nem a transgressão da lei; mas tendo sido Cristo já manifestado, e estando ausente agora e oculto perante o mundo, havia uma oposição formal à revelação especial que tinha sido feita. Não se tratava de uma incredulidade vaga e ignorante; tomava antes uma forma precisa, como possuindo uma vontade própria dirigida contra Jesus. Poderiam crer, por exemplo, tudo o que um Judeu cria, segundo o que estava revelado na Escritura; mas quanto ao testemunho de Deus dado por Jesus Cristo, opunham-se a ele. Não queriam reconhecer que Ele era o Cristo, negando assim o Pai e o Filho. Tal é, quanto à profissão religiosa, o caráter próprio do Anticristo. Ele pode bem crer que haverá um Cristo, pretender sê-Lo, considerar-se ele mesmo o Cristo. Mas os dois aspectos do Cristianismo (o que, por um lado, concerne ao cumprimento, na Pessoa de Jesus, das promessas feitas aos Judeus, e, por outro, as bênçãos celestiais e eternas apresentadas na revelação do Pai pelo Filho) o Anticristo não os aceita! O que o caracteriza como Anticristo é que ele nega o Pai e o Filho. Negar que Jesus seja o Cristo é bem a incredulidade judaica que faz parte do seu caráter. O que lhe imprime o caráter de Anticristo é que ele nega a base do Cristianismo. É mentiroso ao negar que Jesus seja o Cristo; por conseguinte, ele é obra do pai da mentira - é obra de Satanás. No entanto, todos os Judeus incrédulos têm feito o mesmo, sem contudo serem o Anticristo. O que o caracteriza é que ele nega o Pai e o Filho...
Mas há algo mais: Esses anticristos tinham saído do meio dos Cristãos. Havia, pois, apostasia. Não que eles fossem realmente Cristãos, mas tinham estado entre os Cristãos e tinham saído de entre eles. E que magnífica instrução não é também, para os nossos dias, esta Epístola!... Eles manifestavam assim que, verdadeiramente, não eram do Rebanho de Cristo: eram de Satanás. Mas tudo isso tendia a abalar a fé dos mais pequeninos em Cristo, e o apóstolo procura fortificá-los.
Havia dos meios de fortalecer a fé deles, que também enchiam o apóstolo de confiança. Em primeiro lugar, eles tinham a unção da parte do Santo; em segundo lugar, O que era desde o princípio era a pedra-de-toque para toda a nova doutrina - e eles possuíam já Aquele que era desde o princípio.
A morada do Espírito Santo, como unção e inteligência espiritual neles, e a verdade que eles tinham recebido no princípio - a perfeita revelação de Cristo-tais eram as salvaguardas contra os sedutores e contra as seduções. Ver-se-á toda a heresia, todo o erro e toda a corrupção entrechocar-se contra a primeira e divina revelação da verdade, se a unção do Santo estiver em nós para os julgar. Ora esta unção é a própria porção dos pequeninos em Cristo, e eles têm necessidade de serem encorajados a realizá-la, sejam quais forem os cuidados que, com ternura, se lhes prodigalizem, como o apóstolo o fazia aqui.
Descobrimos aqui algumas importantes verdades para nós próprios! A última hora já está manifestada, de modo que devemos acautelar-nos contra os sedutores - pessoas que, aliás, saíram do seio da Cristandade...
O caráter deste anticristo é que ele nega o Pai e o Filho. A incredulidade sob a forma judaica é também manifestada de novo - reconhecendo que há um Cristo, mas negando que Jesus o seja. As nossas garantias contra os sedutores são a unção da parte do Santo - o Espírito Santo - mas em relação especial com a santidade de Deus, que nos faz ver claro na verdade (outra característica do Espírito); e, em segundo lugar, que aquilo que nós ouvimos desde o princípio permanece em nós. É isto, evidentemente, o que temos na Palavra escrita. O "desenvolvimento", note-se bem, não é o que temos desse o princípio. Como o seu próprio nome indica, o desenvolvimento peca radicalmente contra a salvaguarda indicada pelo apóstolo. O que a Igreja tem ensinado como desenvolvimento da verdade, seja qual for a fonte, não é o que ouvimos desde o princípio.
Um outro ponto, assinalado aqui pelo apóstolo, é digno de nota. Poder-se-ia pretender, dando, de uma maneira vaga e imprecisa, a Deus o nome de Pai - que possuíamos o Pai - mas sem a verdadeira posse do Filho, Jesus Cristo. Mas é coisa impossível, pois quem não tem o Pai não tem o Filho, e quem não tem o Filho não tem o Pai. É pelo Filho que o Pai é revelado e é nEle que o Pai é conhecido.
Se a verdade que recebemos desde o princípio permanece em nós, nós permanecemos no Filho e no Pai, porque esta verdade é a revelação do Filho - e é revelada pelo Filho, que é a Verdade. É uma verdade viva, se permanece em nós. Deste modo, possuindo-a, nós possuímos o Filho, e, no Filho, possuímos também o Pai. Habitamos ali, e, assim, temos a vida eterna (comparar João 17:3).
Ora, o apóstolo tinha a feliz confiança em que a unção que eles tinham recebido do Santo permaneceria neles, de modo que não tinham necessidade de serem ensinados pelos outros, porque essa mesma unção os ensinava a respeito de todas as coisas. Ela era a verdade porque era o próprio Espírito Santo atuando na Palavra, que era a revelação de verdade do próprio Senhor Jesus - e não havia nenhuma mentira nela. Deste modo eles permaneciam em Cristo, de harmonia com o que ela lhes tinha ensinado.
. Note-se também aqui que o efeito deste ensinamento, pela unção do Alto, é duplo acerca do discernimento da verdade. Eles sabiam que nenhum engano podia provir da verdade. Assim, possuindo eles esta verdade da parte de Deus, tudo o que não fosse ela era mentira. Sabiam que esta unção, que os ensinava a respeito de todas as coisas, era a verdade, e que não havia nenhuma mentira nela. A unção ensinava-lhes tudo, isto é, toda a verdade, como verdade vinda de Deus. Por consequência, tudo o que não fosse essa verdade, era mentira; nessa unção não havia mentira. Por isso as ovelhas ouviam a voz do Bom Pastor. E se um outro as chamasse, elas sabiam que não era o seu Pastor, e isso lhes bastava. Temiam essa voz e fugiam, porque não a conheciam.
Com o verso 27 termina a segunda série das exortações às três classes de Cristãos. O apóstolo dirige-se de novo a todo o conjunto destes (v. 28). 8 e verso parece-me responder ao verso 8 da Segunda Epístola do mesmo apóstolo, e ao capítulo 3 da Primeira Epístola aos Coríntios.
O apóstolo, tendo terminado a sua comunicação a todos aqueles que estavam na comunhão do Pai, aplica os princípios essenciais da vida divina, da natureza divina, como ela foi manifestada em Cristo, à prova daqueles que tinham a pretensão de nela participarem; não para fazer duvidar os crentes, mas para fazer rejeitar o que era falso. Eu digo: "Não para fazer duvidar os crentes", porque o apóstolo fala da sua posição e da posição daqueles a quem escrevia com a mais perfeita segurança (capítulo 3:1-2)6. Recomeçando no verso 28, João falara da aparição de Jesus. Isto introduz o Senhor na plena revelação do Seu caráter, e dá lugar ao exame das pretensões daqueles que se chamam de Seu Nome. Há duas provas que pertencem essencialmente à vida divina, que são a Justiça ou obediência e o amor, e depois uma terceira prova, que é acessória como privilégio, a saber, a presença do Espírito Santo.
A Justiça não está na carne.
Portanto, se houver, verdadeiramente, Justiça em alguém, ele é nascido de Deus, tira a sua natureza de Deus em Cristo. Podemos notar que é a Justiça, tal como foi manifestada em Jesus; é por sabermos que Ele é Justo que nós sabemos que "aquele que pratica a justiça é nascido dele”. É a mesma natureza demonstrada pelos mesmos frutos.
6. Já fiz notar,anteriormente, a maneira impressionante como o apóstolo fala de Deus e de Cristo, como sendo um só Ser e uma só Pessoa - e não como doutrina quanto às duas naturezas. Mas Cristo está no pensamento do apóstolo, e é dEle que se trata na mesma frase, ora como Deus, ora como Homem. Assim, no capítulo 2:28, Ele vem; no verso 29, o justo é nascido dEle, e nós somos filhos de Deus. Mas o mundo não O conheceu. Ora é Cristo sobre a Terra. No capítulo 3:2, nós somos filhos de Deus, e, no mesmo versículo, Ele aparece, e nós somos semelhantes a Ele. Mas o que torna o fato mais espantoso ainda é que somos identificados com Ele. Somos chamados filhos, porque é o Seu título e a Sua relação. O mundo não nos conhece, porque não o conheceu. Sabemos que seremos semelhantes a Ele, quando Ele aparecer. É-nos dada a mesma posição neste mundo e no Céu (comparar capítulo 5:20).