Prefácio
Deus é infinitamente grandioso, infinitamente sábio, infinitamente mais verdadeiro e fiel, infinitamente mais gracioso e amoroso que o ser humano pode conceber. Portanto, não é de surpreender que a revelação que Deus faz de Si mesmo em Sua preciosa Palavra e na pessoa de Seu amado Filho seja pródiga em mistérios que nem mesmo a mente humana mais privilegiada consiga racionalizar. Nem a filosofia, nem o poder da razão, nem a pesquisa diligente obterão resultados satisfatórios na busca pelo conhecimento de Cristo e da Palavra de Deus. Esses meios são insuficientes para captar toda a maravilha da revelação de Deus.
A consciência do indivíduo deve, antes de tudo, ser despertada para o fato de que Deus, sendo um Deus de verdade, requer que a culpa do homem seja encarada e reconhecida diante dEle. De outra forma, não há como entender a grandeza e a sabedoria de Deus. Se alguém deseja argumentar, o Senhor responde: “Vinde [...] e arrazoemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã” (Isaías 1:18).
O arrependimento seguido de contrição deve preceder a fé genuína em Cristo Jesus, a qual concede o perdão pelos méritos de Seu santo sacrifício no Calvário. “O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1 João 1:7) — se aceitarmos isso com honestidade e simplicidade, a fé passa a ser o maravilhoso fundamento para a compreensão das profundas verdades divinas. Quando a fé opera, o Espírito de Deus torna-as vivas e reais em nosso coração (1 Coríntios 2:10).
Deixemos bem claro que o intelecto, a observação, a intuição e os sentimentos humanos não podem discernir as coisas de Deus. A fé constitui-se em um princípio à parte de todas essas coisas, mas quando age trabalha em preciosa cooperação com elas. Não há como pensar, sentir e discernir corretamente a não ser da perspectiva da fé no Deus vivo. Há muitos paradoxos na Palavra de Deus, coisas que parecem contraditórias mas são perfeitamente plausíveis. Também existem muitos na criação material; portanto, não é de surpreender que igualmente nos deparemos com eles nas Escrituras, pois tanto estas quanto aquela são obras de Deus.
Os paradoxos em geral são simplesmente a expressão de linhas paralelas da verdade, as quais, segundo da definição da matemática, só se encontram no infinito, além de nosso campo de observação. Os trilhos devem conservar sempre a mesma distância entre si, caso contrário o trem irá descarrilar. Portanto, nesse sentido, não há por que racionalizá-los ou forçar uma interpretação para que o intelecto seja satisfeito. Em vez disso, estimulemos nossa fé a encontrar prazer e graça na contemplação da glória, da sabedoria e do poder de Deus.
1. A deidade e a humanidade de Cristo
Esse é sem dúvida o mais maravilhoso paradoxo do universo. “Evidentemente, grande é o mistério da piedade. Deus se manifestou em carne” (1 Timóteo 3:16; JND). O homem puramente intelectual considera inaceitável essa realidade, e muitos se insurgem de modo implacável contra essa fantástica e incomparável manifestação. Alguns apontam o caráter humilde e sofredor de Jesus, a fadiga junto ao poço em Sicar (João 4:6), o sono sobre o travesseiro (Marcos 4:38), o forte clamor e as lágrimas (Hebreus 5:7), as catorze orações registradas no evangelho de Lucas, indicando humilde dependência de Deus, tudo isso prova Sua verdadeira e completa humanidade. Mas, sendo isso verdade, presumem que Ele não podia ser Deus. Tal conclusão, no entanto, é fruto de raciocínio meramente humano. Como o intelecto deles pode decidir o que Deus pode ou não pode fazer? Eles não dão a Deus o crédito de ser maior e mais sábio que eles. Esses opositores não atentam para as várias passagens das Escrituras que claramente afirmam que Cristo é tanto Deus quanto homem, como, por exemplo, Colossenses 2:9: “Nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”. Falando do Senhor Jesus, 1 João 5:20 declara que Ele “é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (leia também João 1:1; 5:23; Hebreus 1:8 etc.).
Independentemente dessas afirmações, a história de Jesus na terra prova a mesma coisa. Muitas de Suas obras somente Lhe são atribuídas pelo fato de Ele ser Deus: Sua autoridade sobre o mar violento (Marcos 4:39); a caminhada por sobre as águas (Mateus 14:25); a capacidade de ler o pensamento dos homens e de responder às suas indagações (Lucas 5:22); o conhecimento de coisas que iriam acontecer (Lucas 9:21; João 13:1,3; 18:14). E há muito mais.
Reconhecemos que a ocorrência simultânea de duas características tão singulares é um mistério. No entanto, um maravilhoso paradoxo observado na criação faz-nos acreditar que tais coisas sucedem também no mundo espiritual. Sir Isaac Newton afirmou que a luz viaja sob a forma de partículas diminutas à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. É a chamada teoria corpuscular. Mais tarde, o cientista holandês Huygens contestou essa teoria e apresentou provas de que a luz viaja em ondas, como o mar. A teoria corpuscular de Newton foi abandonada por algum tempo, até Einstein demonstrar que muitos fatos relativos à luz só eram explicáveis pela aplicação da teoria de Newton, enquanto outros só tinham explicação pela teoria das ondas. Até hoje as duas teorias são aplicadas, embora os cientistas não consigam entender como ambas podem ser verdadeiras. Deus não consulta a nossa inteligência antes de estabelecer as Suas leis.
O cristão encontra profunda alegria tanto na humanidade quanto na deidade do Senhor Jesus e em tudo que tenha relação com essa realidade. O ser humano não pode explicar como isso acontece: está além de sua compreensão. O seu raciocínio não consegue penetrar esse mistério. Mas ainda que seja incompreensível, está provada a sua realidade. A fé aceita esse fato sem reservas, dando a Deus o crédito da existência e da sabedoria, que acreditamos também possuir, e da extraordinária benevolência, que é Sua característica. Temos todos os motivos para adorar sem restrições ao amado Filho de Deus.
2. O Cristo humano e sem pecado
Embora, como já vimos, Cristo reunisse o humano e o divino em uma santa pessoa (fato reconhecido por todos os verdadeiros crentes), alguns dentre nós não admitem que Cristo fosse absoluta e verdadeiramente humano e ao mesmo tempo sem pecado. Isso parece contraditório ao ser humano tentado e afligido pelo mal. Afinal de contas, Cristo não participou integralmente da natureza humana? Se Ele era humano, como podia ser isento de pecado, sem qualquer propensão para o mal?
Esse fato constitui-se em um paradoxo simplesmente devido à nossa tendência de racionalizar. Mas já aprendemos que não devemos confiar em nosso raciocínio, e sim na clara Palavra de Deus.
Hebreus 2 esclarece o fato da humanidade do Senhor Jesus e Sua identificação com a natureza humana: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo [...] Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo” (v. 14,17).
É uma felicidade para o crente conhecê-lo como verdadeiro Homem, que desceu ao mundo motivado pela graça e pela compaixão disposto a identificar-Se com as necessidades humanas! No entanto, isso não deve nos levar a falsas concepções, como nos mostra Hebreus 4:15: “Não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado”.
Embora Ele fosse verdadeiramente humano, a Sua humanidade não envolvia pecado de qualquer espécie. O pecado não é parte do ser humano: é uma anormalidade. Tanto é verdade que Cristo “não cometeu pecado” (1 Pedro 2:22). Também é verdade que “nele não existe pecado” (1 João 3:5) e que Ele “não conheceu pecado” (1 Coríntios 5:21). O pecado não podia influenciar a Sua mente.
Embora Ele fosse tentado como nós, não havia nEle a menor tendência para ceder à tentação. Costumamos associar a tentação à idéia da inclinação para o pecado. No entanto, segundo o conceito bíblico, a tentação é uma prova, um “teste”. Deus permitiu que o Diabo tentasse ao Senhor Jesus para evidenciar a natureza pura do Filho. O teste provou esse fato. Não havia qualquer possibilidade de o Cordeiro “sem defeito e sem mácula” vir a fracassar.
Alguns contestam essa verdade, alegando que Adão era verdadeiro homem e que, apesar de não ser criado pecador, sucumbiu à tentação. Acontece que Adão foi criado inocente, e não santo: não era de sua natureza odiar o pecado, e também não tinha poder para lhe resistir. Maria, com relação a Jesus, foi informada de que “descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (Lucas 1:35). A humanidade de Cristo, portanto, é singular. Em Sua natureza perfeita, havia um ódio santo ao pecado e poder para resistir a ele. Embora fosse verdadeiro Homem em todos os aspectos, possuindo espírito humano, alma e corpo, era uma humanidade santa, impossível de ser contaminada. Além disso, Ele era mais que humano: era Deus.
Se não conseguimos entender como isso é possível, que tal fato nos leve a reconhecer humildemente que Deus é mais poderoso que nós e a confiar inteiramente em Sua Palavra, a fim de que apreciemos tanto a genuína humanidade de nosso Senhor quanto a sua natureza sem pecado.
Leslie M. Grant