INTRODUÇÃO
É difícil conceber um contraste mais forte entre Eclesiastes e Cantares de Salomão, quanto ao objetivo, caráter e manuseio, pois, de todos os livros do Antigo Testamento, Cantares apresenta a afeição do Messias pelo objeto de Sua escolha com uma plenitude e uma particularidade além do que se pode encontrar em qualquer outra porção das Escrituras Sagradas. E o efeito é produzido nesse objeto quando se obtém deste uma resposta adequada, com experiências do mais profundo interesse em seu curso, até a consumação.
Em Eclesiastes, entretanto, encontramos a triste expressão da total incapacidade de tudo o que existe debaixo do sol para satisfazer os anseios do coração daquele que tinha a capacidade apropriada e recursos ilimitados para obter a felicidade por meio da criação, caso fosse possível.
Eclesiastes é a contrapartida negativa de Provérbios, embora pouco tenha em comum com a sua sabedoria sucinta.
A diferença de propósito é demonstrada pelo uso de “Deus” em Eclesiastes e “Senhor”, ou Jeová, em Provérbios. Isso se dá pelo fato de que em Eclesiastes a questão gira em torno de quem o homem é e, consequentemente, de quem Deus é.
Provérbios reflete sobre a questão moral do governo e dos que estão sujeitos a esse governo.
Cantares, por sua vez, está tão permeado do Noivo e da noiva, que não há espaço para mais nada.
E seria difícil considerar Eclesiastes 8:6 uma exceção, embora as palavras finais sejam admiravelmente fortes — de qualquer forma, esse versículo apenas confirma a regra.
A reserva da pessoa do Noivo, cuja identidade é revelada mais adiante, preserva a glória divina intacta. No entanto, o significado mais óbvio de Cantares oferece a mais completa dimensão do amor recíproco que permeia todo o livro, e isso é expressado da melhor maneira, sem que nenhum dos nomes divinos seja introduzido.
Mas não é difícil imaginar que o Espírito Santo tenha usado o mesmo vaso, pelo Seu poder, para escrever esses livros. E, se Deus assim o quis, podemos afirmar que jamais houve um homem que pudesse ser um instrumento mais adequado que Salomão. Porque Deus deu a ele
“sabedoria, e muitíssimo entendimento, e largueza de coração, como a areia que está na praia do mar. E era a sabedoria de Salomão maior do que a sabedoria de todos os do oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios. E era ele ainda mais sábio do que todos os homens, e do que Etã, ezraíta, e Hemã, e Calcol, e Darda, filhos de Maol; e correu o seu nome por todas as nações em redor. E disse três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco.Também falou das árvores, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que nasce na parede; também falou dos animais e das aves, e dos répteis e dos peixes. E vinham de todos os povos a ouvir a sabedoria de Salomão, e de todos os reis da terra que tinham ouvido da sua sabedoria” (1 Reis 4:29-34).
No entanto, havia ainda outros elementos que Deus poderia ter usado em Sua sabedoria.
A abrangência de assuntos dos quais Salomão tratou foi imensa se considerarmos a sua condição singular, não apenas como rei sobre o trono do Senhor (1 Crônicas 29:23), mas como alguém dotado de sabedoria e de conhecimento como nenhum outro. E, por não ter pedido a Deus essas coisas, foi dotado também de riquezas e de honra como nenhum outro rei, antes ou depois dele.
Infelizmente, a história não termina aí. Magnificência, luxo, êxito comercial, fama e até relacionamentos dos mais íntimos com pagãos tornaram-se uma armadilha para ele, pois nem a maior das sabedorias equivale à fé ou à retidão.
Em Deuteronômio 17, o rei é proibido de multiplicar para si cavalos e esposas; Salomão foi explicitamente desobediente em ambos os aspectos.
Ao rei era ordenado fazer uma cópia da lei do Senhor, para que aprendesse a temer a Deus e guardar todas as Suas palavras; mas, quando Salomão envelheceu, as suas esposas desviaram o coração dele para outros deuses. Por causa disso, Salomão estava longe de ser perfeito para com o Senhor, como fora o seu pai Davi.
Se Deus usou Davi, apesar de suas graves falhas, como instrumento para compor os mais nobres salmos e hinos para o povo louvar a Deus, nada nesse sentido anula a Sua escolha de Salomão, não só em sua juventude, quando o prazer de Deus nesse rei era evidente, mas até mesmo em um escrito como Eclesiastes, cheio de experiências amargas e humilhantes.
Pelo contrário, tendo em mente a diferença entre Israel e a Igreja, ou o Cristianismo, podemos facilmente perceber que Salomão, que é de fato o autor desse livro (se cremos nas Escrituras), era o mais indicado para cumprir o propósito de Deus.
Se o Pregador ou Proclamador não tivesse se identificado como filho de Davi, rei em Jerusalém, quem mais, além de Salomão, poderia ter escrito esse livro?
Ele também declara que era “rei em Jerusalém”. Quem mais poderia ser esse rei, a não ser Salomão? Seu herdeiro imediato não conseguiu ser rei sobre Israel por muito tempo: perdeu dez das doze tribos e se tornou rei apenas sobre Judá, não sobre todo o Israel.
No entanto, ainda que o livro não tivesse indicações distintas, como Eclesiastes 1:1,12, quem poderia proferir palavras de sabedoria como as que vemos na segunda porção de Eclesiastes 1, a não ser Salomão? Quem poderia se assentar como juiz sobre tudo que é feito debaixo dos céus e pronunciar a sua insignificância, como se vê em Eclesiastes 2, a não ser alguém que tivesse a importância daquele grande rei?
Acaso viveu depois de Salomão em Jerusalém alguém tão qualificado quanto ele, que pudesse falar de grandes obras que realizou, de construções e plantações e tudo o mais; de servos e servas; de manadas e rebanhos em escala superlativa; de sabedoria sem igual; de vastos acúmulos de prata e ouro e de tesouros dignos de reis? Não há razão para se pensar em um escritor anônimo fazendo-se passar por Salomão — uma ideia estranha às Escrituras, apesar de parecer razoável aos olhos de homens mundanos, acostumados à ficção.
Nesse livro, tudo é intenso e exala realidade pura, pois o autor havia provado, e muito, de tudo.
Ele tinha autoridade para falar sobre o assunto.
O caráter coloquial combina bem com alguém que se sentia totalmente à vontade numa corte; e o formato aramaico combina com alguém que, em todos os graus, tinha vasta interação com os povos vizinhos. Jamais houve uma mente tão desprendida do tempo ou do espaço como Salomão.
Capítulo 1
v. 1 - Palavras do pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém.
A introdução apresenta claramente uma tese, elaborada não apenas por um homem inspirado, mas alguém particularmente capacitado a pregar um sermão como nenhum outro. Daí a necessidade de essa obra ser oriunda do rei Salomão e de o leitor poder afirmar, com a mais elevada autoridade, que tais palavras são dele e de nenhum outro.
É impossível expressar isso de maneira mais simples e genuína que pela forma que o Espírito Santo escolheu fazer. Tal forma de comunicação, estranha à primeira vista, que aumenta em solenidade à medida que refletimos sobre ela, é singular e divina; mostra que o homem sempre foi lento para aprender e pronto para acreditar que a sua vida consiste na abundância das coisas que possui.
Não é a culpa, como nos Salmos 32 e 51, que se discute aqui, mas a infelicidade do homem cujo coração não se eleva acima da criatura. Os mais abundantes bens, a maior capacidade, o nível mais exaltado, a mente mais ativa, o gosto mais requintado, sim, e sabedoria acima de todos os homens apenas intensificam a insatisfação e a miséria.
E Salomão foi tanto o homem que teve essa experiência ao se afastar de Deus, como também aquele que nos permite usufruir de seu aprendizado, na medida em que a graça o ajudou a ponderar sobre tudo e a comunicá-lo, para admoestação eterna. Trata-se do fruto da Queda e do pecado — o que mais poderia ser?
v. 2 - Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.
“Vaidade de vaidades” não apenas aqui e ali, mas “tudo é vaidade”, efêmero, especialmente o homem sem Deus. Mas não a fé, que olha para além do sol, para os meios da graça, nem o temor que guarda os seus mandamentos.
v. 3 - Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?
A expressão “todo o seu trabalho” retrata, de certa forma, o esforço do homem “debaixo do sol”, o trabalho inútil para obter felicidade (v. 3).
A “sombra” desejada ansiosamente pelo empregado, quão frágil é! (Jó 7). No entanto , “aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre”, e isso é ainda mais evidente porque “o mundo passa, e a sua concupiscência”, “porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida [a glória vã], não é do Pai, mas do mundo”.
Contudo, essa revelação clara e incisiva aguardava um futuro mais distante, quando o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para que pudéssemos conhecer Aquele que é verdadeiro.
Aos olhos dos incrédulos, o arrependimento genuíno nada mais é que pessimismo.
vv. 4, 5, 6, 7 - Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece. Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos. Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr.
A tese é seguida de quatro ilustrações da esfera natural (vv. 4-7) e de tantas outras da esfera moral (v. 8-11).
Existe uma diferença entre a terra inanimada e o que é ser vivo, ou seja, o que tem vida em si mesmo. Mas que abismo há entre a criatura sensível e a que apenas vegeta! A diferença é ainda maior entre o que tem apenas uma alma natural e o corpo humano no qual Elohim Jeová soprou o fôlego de vida, quando então o homem, e apenas o homem, se tornou uma alma vivente. Ou, como é dito em Eclesiastes:
“O fôlego do homem vai para cima, e [...] o fôlego dos animais vai para baixo da terra” (cp. 3:21).
Mesmo assim, “geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece”. O que há na terra que possa preencher o vazio do coração do homem?
Deixe-o então olhar para o sol, o mais brilhante globo da visão humana, que lança acima de tudo luz e calor sobre os seus sentidos.
Afinal, sem o sol o que seria da terra e de todos os seus habitantes, principalmente do homem? Então que proveito — ou felicidade — o homem obtém do sol enquanto o contempla?
“Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu”: seria essa a fonte de felicidade que o seu espírito anseia?
Movimentos ordenados e infalíveis são nítidos em conexão com a terra, mas isso não afeta a sensação de efemeridade do homem em seu ser e em seu meio ambiente apenas para agravá-la?
E quanto ao vento, cuja palavra em hebraico é a mesma que expressa o aspecto mais elevado da natureza sensível e mesmo inteligente, cujos movimentos contrastam fortemente com as moções mundanas?
Bem, “o vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos”. Também no vento não há nada que console o espírito ansioso do homem.
Restam então os rios, os córregos das montanhas. Será que eles conseguem revigorar a mente enferma? Vejamos:
“Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr”.
Os rios são admiravelmente benéficos para a terra, para a atmosfera e para todas as criaturas. Mas não oferecem uma única gota de conforto àquele que foi feito à imagem e semelhança de Deus, uma vez que toda a criação está arruinada e corrompida pelo pecado e totalmente sujeita à vaidade.
Toda a criação geme e sente dores de parto até agora. E o homem, seu governante, sente e lamenta mais que todos, ou então, caso tenha rejeitado a Deus e esteja cauterizado por Satanás, alimenta o sonho fatal do aperfeiçoamento por meio da educação, da ciência e de todos os outros meios de sua vontade não regenerada.
Mas são exatamente desses meios que tratam os próximos quatro versículos, que expõem sua incapacidade de suprir o que o homem necessita.
v. 8 - Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
Ele se volta para as coisas mais próximas da experiência e do interesse imediato do homem e declara que todas essas coisas e palavras são fadiga (ou, como alguns pensam, ineficazes) e estão além de algo que se possa expressar.
E não apenas isso: mesmo para os sentidos mais abertos e mais fáceis de agradar, o olho não se satisfaz nem o ouvido é saciado.
O resultado é fadiga e decepção, não felicidade. Quão diferente quando alguém contempla o Filho e crê nEle!
Pois Ele é o Pão da vida, e o crente que se alimenta dEle não sente fome nem sede. Isso não o surpreende, pois a água que Ele dá se torna no crente uma fonte a jorrar para a vida eterna.
O homem caído torna-se cada vez mais miserável, e só não o sente se estiver sob o efeito de opiáceos — que o acabam levando a uma miséria ainda maior.
Mas não há também prazer na novidade? A resposta:
v. 9, 10, 11- O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.
Digamos que isso se refira ao âmbito moral, percebido especialmente no que já aconteceu, não haveria outra área que nos permita dizer: “Veja, isso é uma novidade”? Seja o que for, é algo que já ocorreu ou fez parte de uma época anterior à nossa.
Então quer dizer que não há prazer nem mesmo na mente alienada? A verdade é que “já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois”. Essa é a experiência humana debaixo do sol.
W. K.